quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Haiti, país ocupado - Eduardo Galeano (28/10/11) - Tradução Profa. Ms. Mariana Lima Marques


Consulte qualquer enciclopédia. Pergunte qual foi o primeiro país livre da América. Receberá sempre a mesma resposta: os Estados Unidos. Porém, os Estados Unidos declararam sua independência quando eram uma nação com seiscentos e cinqüenta mil escravos que assim seguiram durante mais um século, e na sua primeira Constituição definiram que um nego equivaleria a três quintos de um homem branco.
            E, se q qualquer enciclopédia você perguntar qual foi o primeiro país a abolir a escravidão, receberá sempre a mesma resposta: Inglaterra. Porém, o primeiro país a abolir a escravidão não foi a Inglaterra, e sim o Haiti, que segue sua história pagando pelo pecado de sua dignidade.
            Os negros escravos do Haiti haviam derrotado o glorioso exercito de Napoleão Bonaparte e a Europa nunca perdoou esta humilhação. O Haiti pagou a França, durante um século e meio, uma indenização gigantesca por ter sido CULPADO DE SUA LIBERDADE. Aquela insolência negra segue doendo aos senhores brancos do mundo.
            De tudo isso, sabemos pouco ou nada.
            O Haiti é um país invisível.
            Só conhece a fama quando um terremoto em 2010 matou mais de 200 mil haitianos.  A tragédia fez com que o país ocupasse inesperadamente o primeiro plano dos meios de comunicação de todo o mundo.
            O Haiti não é conhecido pelo talento de seus artistas, magos do lixo capazes de converter a tragédia em formosura, nem por suas façanhas históricas contra na guerra contra a escravidão e exploração colonial.
            Vale a pena repetir mais uma vez: o Haiti foi o país fundados da Independência das Américas e  primeiro que derrotou a escravidão no mundo. Merece muito mais que notoriedade nascida de suas desgraças.
            Atualmente, os exércitos de vários países ocupam o Haiti. Com se justifica a ocupação militar? Alegando que o Haiti coloca em perigo a segurança internacional. Nada de novo.
            Ao longo do século XIX, o Haiti constituiu uma ameaça para os países que continuavam a praticar a escravidão. Havia dito Thomas Jefferson: Do Haiti provinha a peste da rebelião. Na Carolina do Sul, por exemplo, a lei permitia prender qualquer marinheiro negro enquanto seu navio estivesse no porto, pelo risco de que ele pudesse contagiar os outros com a peste antiescravista. No Brasil, essa peste se chamava haitianismo.
            Já no século XX, o Haiti foi invadido pelos Marines por ser considerado um país inseguro para os credores estrangeiros. Os invasores iniciaram por apoderar-se da alfândega e a entregaram o Banco Nacional ao City Bank de Nova York. E já que lá estavam, permaneceram por dezenove anos.
            A fronteira entre o Haiti e a Republica Dominicana se chama “passo em falso”. O nome é um sinal de alarme: você está entrando num mundo negro, da magia negra, da bruxaria...
            O vudu, a religião que os escravos trouxeram da África e se nacionalizou no Haiti, não merece ser chamada de religião. Do ponto de vista dos proprietários da civilização, o vudu é coisa de negros, ignorância, atraso, pura superstição. A Igreja Católica, de onde não faltam féis capazes de vender unhas de santos e plumas do anjo Gabriel proibiu o vudu oficialmente, sem que a população reconhecesse.
            Porém, há alguns anos as seitas evangélicas se encarregaram de da guerra contra a superstição no Haiti, essas seitas vem dos EUA, um país que não tem 13º andar em seus prédios ou 13ª fila nos aviões e habitado por civilizados cristãos que crêem que o mundo foi criado por deus em 7 dias.
            Nos EUA, um pastor evangélico Pat Robertson explicou na televisão o terremoto de 2010. Esse pastor revelou que os negros haitianos teriam conquistado a independência da França a partir de uma cerimônia de vudu, evocando a ajuda do diabo das profundezas da selva haitiana. O diabo, então, que é deus da liberdade, lhes enviou o terremoto para que eles pagassem a conta.
            Até quando seguirão os soldados estrangeiros no Haiti? Eles chegaram para ajudar e estabilizar, porém estão há sete anos desestabilizando um país que não os quer!
            A ocupação do Haiti está custando às Nações Unidas mais de oitocentos milhões de dólares por ano. Se as Nações Unidas destinassem esses fundos à cooperação técnica e à solidariedade social, o Haiti poderia receber um incentivo ao seu desenvolvimento. E se salvaria de seus salvadores armados que possuem certa tendência a estuprar, matar e transmitir doenças fatais.
            O Haiti não precisa de nada que venha multiplicar suas mazelas. Tampouco precisa de caridade. Como bem diz um ditado africano, a mão que dá está sempre acima da mão que recebe.
            Porém, o Haiti precisa, sim, de solidariedade, médicos, escolas e uma colaboração verdadeira que torne possível sua autossuficiência alimentar assassinada pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Mundial e outras sociedade filantrópicas.
            Para nós, latinoamericanos, essa solidariedade é um dever de gratidão. É a melhor maneira de dizer obrigado a esta pequena nação que em 1804 nos abriu, com seu contagioso exemplo, as portas para a liberdade.
(Este artigo é dedicado a Guilhermo Chiffelet, que foi obrigado a renunciar à Câmara dos Deputados do Uruguai quando votou contra o envio de tropas para o Haiti).

Artigo original em espanhol disponível em http://www.rnv.gob.ve/noticias/index.php?act=ST&f=15&t=166822